#48
Dizes que estás velho
Eu podia dizer-te que                  
sei de cor cada uma das rugas 
que te emolduram os olhos azul mar 
(onde me perco e naufrago em cada despedida)
Que sei 
o ondulado da maior madeixa branca 
que sobressai no teu cabelo 
(agitado) 
e que gosto de observar
Dizes que as tuas mãos são rudes e imperfeitas
Eu podia dizer-te que sei de cor 
os vincos de cada tendão 
O formato das tuas unhas 
Os gestos que fazes enquanto conversas
Ou como insistes em ir puxando 
o canto da cutícula do polegar 
com o dedo maior da tua mão 
Sobre as tuas mãos 
podia ainda continuar a dizer-te que sei que 
o mínimo da mão direita 
nunca se abre até ao fim 
(e nunca te perguntei porquê)
Na verdade 
podia também dizer-te que 
são tão meigas essas mãos 
São as mãos que me abraçam 
que me fazem 
(raras vezes) 
uma festa no rosto 
que me esculpem, desenham 
e me escrevem 
(mesmo que pouco) 
todos os dias
Dizes que a vida te sabe melhor sozinho 
E eu podia fugir e dizer-te apenas sobre a forma 
como prendes os sabores entre os dentes 
a cada garfada que tragas
Ou podia dizer-te 
sobre a vida sozinho
que aprendi a gostar de ti assim 
Mas que quando te juntas a mim 
gosto mais de como nos rimos tanto
Podia dizer-te que 
(quase) 
todos os dias sou só eu que aqui fico sozinha 
E fujo sim 
para cada uma das 
imagens dos teus risos e sorrisos 
que guardo dentro 
dos meus olhos fechados
Podia dizer-te que 
quando me faltas 
os fecho com mais força 
Porque quando os aperto 
há sempre uma ou outra lágrima que cai 
e espero sempre que
ao rolarem pelo meu rosto 
alguma traga lá dentro 
o cheiro da tua pele 
para que eu o sinta perto dos lábios
Podia dizer-te 
ainda e de novo 
o que te digo e escrevo tantas vezes 
Relambórios de coisas 
simples de sentir
Podia dizer-te que 
todos os dias aprendo a não me importar 
de aqui ficar neste ir ficando 
No que somos. Ou que nem somos 
Dizes-me que me fazes perder tempo
Podia dizer-te que 
o tempo já me cegou os olhos 
e me abrandou a necessidade de te procurar
mas que não me arrefeceu o peito 
Que o tempo nunca vai 
envelhecer-me as mãos 
com que te acaricio as costas 
sempre que me pedes 
Que o tempo nunca vai 
apagar-me a vontade de ti  
Podia dizer-te que um dia vou
Vou, sim
escolher ficar 
mesmo quando me perder neste caminho
mesmo quando me perder neste caminho
Que me paro sempre aqui 
onde acaba a estrada, 
me falta o chão e começa o abismo
me falta o chão e começa o abismo
e recuo os passos dados em um ano 
para recomeçar tudo antes do fim 
Tudo o que nunca existiu 
tudo o que nunca fomos 
mas que dentro da casa e do peito 
fomos e somos
Podia dizer-te que nada disto é verdade
Mas não posso
Apenas porque não sei 
mentir-te
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